Maria Helena
de Aguiar N. é uma sobrevivente. Sobreviveu, em silêncio, ao peso de um
poderoso estigma, o de ser filha de um padre, da Igreja Católica, que
permaneceu na função. Passou 25 dos seus 31 anos soterrada pelo peso da culpa
(alheia), até que o noticiário em torno da abertura da igreja para homossexuais
e católicos casados fora dos cânones animou-a a prestar este depoimento.
O silêncio
produziu feridas, mas não a impediu de formar-se em Relações Internacionais,
pela Universidade de Brasília, e de, ironia do destino, tornar-se funcionária
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência -justamente ela a quem o
destino negou o elementar direito de dizer "meu pai". O segundo
sobrenome é omitido a pedido dela, que não quer expor o pai.
*
Depoimento...
Lembro-me
bem da luminosidade do dia e do local em que soube que era filha de um padre,
um padre que não abandonara o sacerdócio.
Era uma
manhã de sol, na varanda do nosso apartamento em Brasília. Minha mãe disse:
"É um segredo. Nunca revele a ninguém. Seu pai é padre. Quando lhe
perguntarem sobre isso diga que ele é professor universitário. De filosofia. No
sul do país".
Acho que
tinha 4 ou 5 anos, no máximo. Nessa idade, acredito, não se questionam ordens.
Se obedece. E assim foi feito por cerca de 25 anos.
Os contatos
com meu pai eram muito rápidos e feitos por meio de ligações telefônicas a
cobrar, três vezes ao ano. Páscoa, aniversário e Natal. Sussurradas.
Talvez como
forma de aumentar a culpa pela transgressão à norma e pela minha existência não
se optou por romper de uma vez por todas o frágil laço que nos unia.
Na infância,
a manutenção do segredo era essencial para minha sobrevivência em um ambiente
familiar e escolar absolutamente católico.
Estudar em
colégios como Santa Doroteia, Sagrada Família, Marista e outros cuja
coordenação pedagógica era administrada por ordens como a salesiana ou pela
Opus Dei (uma prelazia), era, para mim, o grande desafio da discrição e do
anonimato.
Para além da
excelente formação educacional e cultural recebida nesses colégios, formei-me,
também, na arte da despersonalização.
Quanto mais
calada, mais introspectiva e menos informações pessoais aos colegas de classe,
melhor. Em uma época em que filhos de pais divorciados ainda sofriam
discriminação, via como verdadeira sentença de morte a possibilidade de ser
descoberta como filha de padre.
Características
físicas e de personalidade como timidez, discrição, voz baixa, aspecto frágil e
doçura foram, na verdade, ativos desenvolvidos como proteção pela sobrevivência
nesses ambientes.
Hoje me
divirto quando recebo elogios ou críticas nesse sentido. A maioria dessas
características permanece.
Brinco com
alguns amigos mais íntimos que poderia mandar meu currículo para a inteligência
russa em razão desse treinamento intensivo de mentira e de dupla espionagem
desde a infância.
As
catequeses e as missas dominicais, de igual maneira, eram ambientes inóspitos e
muito pouco acolhedores aos quais acabei me adaptando com o passar dos anos e,
paradoxalmente, gostando de frequentar.
Essa é hoje
a parte da história que mais me assusta. Pensar que, ao mesmo tempo em que
gostava de frequentar ambientes e ritos religiosos, acreditava também na ideia
de que eu era a materialização do "pecado" pela quebra do celibato.
Isso
significou me descobrir alguém que gostava de se sentir punida.
Certo dia
acordei de manhã e me vi como a cachorrinha Kashtanka de um dos clássicos de
Tchekhov, que largou uma vida confortável no circo e voltou para o
"conforto" de seu dono agressor. Tive medo.
Esse meu
gosto pelo sofrimento significava, na realidade, a reprodução de uma opção
feita pelos meus pais de não abandonarem parte importante da sua identidade
cultural –a religião católica– por conta da concepção de uma filha.
A escolha
pela negação da identidade de pai e de mãe em função da reafirmação de uma identidade
católica –mais forte e dominante.
E a óbvia
culpa manifestada inconscientemente em diversas ocasiões.
Sempre
existiu a opção de abandonar a profissão de padre ou a de criar a filha em um
ambiente não religioso e livre da culpa católica. A liberdade e a plena
consciência são sempre uma opção. Mas optou-se pelo sofrimento e pela culpa. De
ambas as partes.
A minha não
reação a fatos importantes, como quando soube pela minha mãe que meu pai lhe
pediu aborto ou que ela própria tentou se matar em uma depressão pós-parto, são
sinais de o quanto o silêncio e a negação de fatos reais sempre foram, para
mim, confortáveis refúgios de sobrevivência.
A
vitimização e a manutenção do silêncio teriam sido o caminho mais fácil caso
não tivesse a sorte de ouvir de uma amiga psicóloga: "Esse segredo não é
seu!".
Aos poucos
essa frase foi se solidificando e fui me afastando cada vez mais dos dogmas
religiosos e do estigma de ser "filha de padre".
Ainda hoje,
porém, o inconsciente continua me dando algumas rasteiras e, por vezes, me vejo
revivendo dores de vazios não preenchidos.
Ouvi
recentemente de uma amiga de trabalho que ela e o marido estavam preparando um
almoço de casamento para suas famílias. No mesmo instante, ouvi de novo a frase
de um funcionário do seminário quando, pela última vez, em 2006, tentei contato
com meu pai por meio de ligação anônima e obtive a seguinte resposta: "Ele
está de férias com a família".
Família é
conceito difuso. Deveria ser o lugar de acolhimento e de hospitalidade de todo
indivíduo.
O lugar no
qual todos os membros se sentissem queridos, protegidos, abraçados –não de
forma teatral e dissimulada, mas genuína.
Lugar de
acolhimento do ser em sua essência –e não de julgamentos pela escolha de
parceiros, pela opção sexual, pela renda, pelo tipo físico ou pela vida
pregressa dos pais.
Para os
filhos de padres, bastardos por decreto da Igreja Católica desde o nascimento,
o conceito de família é algo a ser repensado e ressignificado. Caso contrário,
é possível que traumas se instalem e se perpetuem por gerações.
Na França,
na Alemanha e na Áustria existem associações de filhos de padres, os chamados
"Enfants du Silence". No Brasil não. Talvez pelo amplo moralismo e
conservadorismo que ainda permanecem em nossa sociedade. Ou pelo medo.
A Igreja
Católica e a sociedade brasileira precisam dar voz a esse segmento de
sobreviventes.
Sobreviventes
do aborto, do preconceito e, especialmente, de anos de silêncio acerca de sua
identidade.
Fonte:
Folha.com Agência Miséria
Folha Serrana, um site criado para mostrar os fatos e cultura dos Bastiões/Iracema e toda a região jaguaribana...
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