Invisíveis
aos olhos da sociedade, crianças e adolescentes, após passarem por conflitos
familiares ou, de alguma forma, serem negligenciados pelos pais, acabam optando
por viver nas ruas. A falta de afeto e, muitas vezes, até do essencial, como o
alimento, é o que os leva às ruas, onde passam por todo tipo de adversidade.
Sem que tenham opção de escolha, acabam tendo a infância e a adolescência -
entre as fases mais bonitas da vida - furtadas pela miséria. De uns anos para
cá, entretanto, observa-se uma mudança no perfil da situação de rua de
Fortaleza.
Antigamente,
era muito comum encontrá-los cheirando cola ou solvente pelas ruas do Centro da
cidade. Geralmente, estavam em grupos, concentrados, principalmente, nas praças
da Estação, Lagoinha, José de Alencar e Igreja da Sé. Hoje, continuam saindo de
casa pelos mesmos motivos: os laços fragilizados com a família. No entanto, em
vez de irem para os tradicionais pontos do Centro, permanecem na própria
comunidade, sendo cooptados pelo tráfico de drogas, onde assumem o pior
"serviço".
Para
descrever essa mudança de perfil da situação de rua de Fortaleza, o Diário do
Nordeste publica, a partir de hoje, sempre às segundas-feiras, a série
"Vidas nas sombras da rua". O material se debruçará sobre a questão
do crack, dos homicídios na população jovem e destacará, ainda, a as carências
da área, desde a exatidão dos dados sobre o tema até a precariedade.
Status
"Eles
são ludibriados de tal forma que não se veem nesse papel. Para eles é status,
um respeito moral. Mas, na verdade, estão sendo induzidos para ficar na linha
de frente, sendo os 'soldados da guerra'. Tentam matar os rivais e, quando não
matam, morrem, quando não morrem, cometem deslizes no sentido de quebrar alguma
regra imposta pelo tráfico.
Às vezes, a
gente encontra meninos nas ruas do Centro ou da Beira-Mar vindos dessa
situação, por estarem ameaçados de morte. Estavam muito envolvidos na
criminalidade ou perderam droga", explica Antônio Carlos da Silva,
educador social da organização O Pequeno Nazareno.
Mesmo que
sejam apreendidos pela Polícia e percam a droga, eles ficam com a dívida.
"Não há um perdão", explica o educador. Como não têm como pagar, para
não morrerem, eles acabam buscando refúgio nas ruas. "Já me deparei com
vários casos desses. Eles chegam desnorteados. Têm vergonha de pedir, então
passam muita fome. Aos poucos, vão se adaptando e encontrando estratégias de
viver naquele espaço e, às vezes, ficam. Ou a família vai atrás e consegue
mandar para outro local. Esses meninos acabam não entrando para as
estatísticas, apesar de ser neste contexto onde está acontecendo esse
extermínio da juventude", denuncia.
Outra
característica do crack é que trata-se de uma droga que segrega os meninos,
diferente da cola, que agregava. "A cola tinha uma característica de ser
compartilhada. Ela é muito barata, então rapidamente eles conseguiam juntar
dinheiro para comprar e passavam o dia inteiro cheirando, entravam pela noite.
Não existia essa fissura do crack de usar mais e mais", explica.
O educador
social comenta que o crack acaba criando um distanciamento entre as crianças e
adolescentes em situação de rua. Em outros tempos, eles ficavam concentrados em
grupos de 30 e até 40 pessoas. Enquanto hoje, se tornaram escravos da droga.
Para conseguirem dinheiro para usar crack o dia inteiro, como desejam, vão para
bairros e outros locais menos povoados por pessoas em situação de rua. Foi essa
a estratégia que encontraram de conseguir dinheiro para manter o vício.
Impacto
Por não
estarem mais aglomerados em grandes grupos, muitas vezes eles acabam passando
despercebidos. Para a sociedade, não é tão impactante. Por isso, tornou-se
comum encontrar pessoas vagando pelas ruas da cidade, parecendo zumbis. Essa
mudança de perfil, na qual predomina o uso do crack, dificulta o trabalho dos
educadores sociais - que fazem abordagem de rua, através das chamadas
busca-ativa.
Por não
terem inserção dentro das comunidades, eles encontram dificuldade de chegar até
esses meninos, em decorrência da situação incômoda imposta pelo tráfico de
drogas. "A presença de educadores interferindo na dinâmica deles não é bem
vista. Os traficantes têm interesse que os meninos fiquem do lado deles. Já
aconteceu, inclusive, situações de colegas serem ameaçados de morte",
afirma Antônio Carlos. Em alguns casos, o educador tem que pedir permissão ao
chefe do tráfico, e só quando ele concede é que conseguem realizar algum
trabalho com os meninos.
Quais as
artimanhas para driblar a miséria?
Sem nada
para comer em casa, João Pedro (nome fictício), com apenas 9 anos, se viu
obrigado a buscar o alimento para matar a fome nas ruas. Sem rumo certo, vagava
pela cidade, entre os terminais do Antônio Bezerra e do Siqueira pedindo a
transeuntes alguns trocados. "A minha mãe não tinha nada para me dar para
comer, então eu fui mesmo. Eu gostava de ficar no terminal. Pedia dez, 50
centavos. Se visse uma pessoa comendo eu pedia. Chegava em um restaurante e
eles quase que não davam. Pensavam que nós 'ia' roubar", relata o menino,
hoje com 14 anos.
Muitas de
suas dormidas foram no Terminal do Siqueira, debaixo de um banco onde passou
fome e, principalmente, frio. O único objeto que dispunha era um papelão que
utilizava para cobrir o chão. E, apesar de conhecer outros meninos, preferia
ficar sozinho. Assim Pedro viveu durante meses, até ser abordado por um
educador social.
Passou por
três instituições. Chegou, inclusive, a ficar abrigado durante quatro anos em
um sítio do Pequeno Nazareno, em Maranguape. Porém, quando retornou para casa,
pouca coisa havia mudado. Foi quando começou a enveredar para o mundo do crime.
Tornou-se avião (comercializa a droga) e começou a praticar assaltos dentro da
comunidade em que reside, no Planalto Ayrton Senna. Ele percebeu que o tráfico
lhe dava condições de permanecer no próprio bairro e, dessa forma, deixou de ir
aos terminais. Pedro tem outros 14 irmãos. O mais velho também está envolvido
com o mundo do tráfico. Já um mais novo, de 12 anos, está internado no sítio em
Maranguape.
A sua mãe,
após visitar um irmão que está preso, conheceu um presidiário e, desse
relacionamento, já teve sete filhos. Ao conhecer a morada de Pedro fica muito
fácil entender o porquê de ele ter ido parar nas ruas. A casa, um pequeno vão
de chão batido e paredes sem reboco, toda esburacada, é onde vive com a mãe e
os demais irmãos e irmãs. As camas ficam uma ao lado da outra.
Apenas uma
pequena cômoda, caindo aos pedaços, acomoda as roupas e brinquedos das irmãs
pequenas. A casa não tem fogão e nem geladeira. O espaço destinado ao banheiro,
pelo mal cheiro, dá indício da situação de insalubre que a família vive.
Apesar da
pouca idade, Pedro tem uma lista de amigos que perdeu para o tráfico. "Foi
um bocado. Tem o finado Leandro (nome fictício) e um primo também. 'Nós' não
pode andar para muito longe, só por aqui. Se passar, pode ser que um do outro
lado pegue. 'Nós' não pode se bater de frente com os outros meninos que
conhecem 'nós'. Até outro dia, a gente jogava bola na quadra, mas 'crescemo' e
'tamo' aí". Sem saber falar sobre o futuro, vive um dia de cada vez.
"O amanhã só quem sabe é Deus. Não sei se eu vou sobreviver. Ando com um
bocado de amigos e não sei nem se eles têm treta", diz.
Envelhecida
demais para os seus 32 anos, a mãe de Pedro (identidade preservada) sonha com
um futuro diferente para os seus filhos. "Espero que o futuro deles seja
melhor que o meu. Eu nunca estudei, nunca tive oportunidade, queria que eles
estudassem para ser alguma coisa na vida, porque é difícil", desabafa.
Luana Lima
Repórter
Na disputa por território, quando não matam rivais, morrem
FOTOS: KID JÚNIOR
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