Ontem, a "doença de
criança" fazia seu holocausto singular no sertão nordestino. Ainda hoje,
bebês seguem o duro caminho do útero para a cova rasa. A dor do parto dá lugar
à dor da partida, infinita
Sepultamento de Quitéria
Lívia, que viveu apenas cinco dias, em cemitério clandestino para crianças
pagãs em Santa Quitéria, no Sertão Central do Ceará
FOTO: ALEX COSTA
As dores do parto doem menos
quando nasce um anjo. Porque a dor após dar à luz é tão imensa que as
contrações uterinas soariam cócegas. Mas é mais: um pedido para sair. E só após
se descobre que era além: um apelo. A distância entre tempo e destino foi tão
curta que Dilce não imaginava que a roupinha de bebê engomada e dobrada na
bolsa a caminho da maternidade se faria mortalha horas depois.
Após cortar o sertão
jaguaribano em ambulância sem maca, entre outras ausências, e ser recusada em
duas cidades, incluindo a própria, Dilce teve o cordão umbilical cortado. Foi
como quem solta um balão no céu em melancólica viagem.
Depois de brigar com Deus,
sobre por que fez aquilo, Francedilza Silveira, a Dilce, encontrou como
explicação: havia de ser. Na tradição cristã, lembram a ela, criança que morre
é um anjo a mais a povoar os céus, chamado por Deus. Sem contestações. A equipe
médica no parto e a sequência de pessoas que antes cruzara na peregrinação
intermunicipal, incluindo o motorista - não podia ir mais rápido porque os
quatro pneus estavam carecas e já arriscava a vida de todos - disseram-lhe que
deveria dar graças a Deus por estar viva, não ter ido junto. Em meio à dor,
ainda abortaram-lhe o desejo de, ao menos por um instante, ter asas.
Veja webdocumentário da série
Parto do Anjos
Se...
Uma enfermeira, voz solitária
que acompanhou aqueles sofrimentos finais de uma dor que estava só no começo,
disse-lhe que se tivesse uma maca para viajar deitada, se houvesse equipe de
saúde para além do motorista-salva-vidas, 'se' uma pequena série de
necessidades óbvias no procedimento, "sua filha teria sobrevivido".
Era o avesso de uma sentença.
A constatação só aumenta as
dores de Dilce. Essa não aparece em ultrassom, tampouco resolve com analgésico.
Não tem nome, nem fim. Ana Vitória chega em casa no colo do pai, embalada num
caixão. E qualquer resposta para os 'ses' depois resta sepultada numa cova
rasa. Mergulhados no 'se', e tentando nos aproximar das singularidades que
envolvem a dor do parto e a dor do partir, viajamos pelo sertão do Ceará,
encontrando histórias de pais e mães de anjos. Mais do que isso, dos pneus
carecas e da maca da ambulância, dos hospitais que disseram "não" e
"sim". Relatos apresentados, de hoje até sexta-feira, na série de
reportagem "Parto dos Anjos" .
Investigamos e questionamos
os tortuosos caminhos que, de alguma forma, contribuíram para as mortes. Até
que somos surpreendidos com a sequência de óbitos em poucos dias numa mesma
região, a do Sertão Central. Testemunhamos, de forma inesperada, o levantar da
poeira nos enterros em cemitérios de anjinhos.
Em Santa Quitéria, Bruno da
Silva, de 12 anos, enterra sua irmã enquanto os pais choram em casa; Maria
Claudiana tem dois partos para o mesmo filho em Canindé de São Francisco. Em
Quixeramobim, um pai tem na certidão de óbito a única declaração de que sua
filha viveu. Outra mãe, Francisca Severina, ouviu da médica que "se
soubesse" que o esposo trabalhava no mesmo hospital, tinha feito o parto
que recusara duas vezes. Da mesma forma, não assinou o óbito.
Naquela terra de Antônio
Conselheiro, o sertão virou mar de anjos, sendo as cruzes âncoras de vidas
naufragadas. O conselho comum é "não vá atrás". Não questione médico,
hospital. Não pergunte a Deus. Não trará seu filho de volta. Mesmo assim, Severina
quer ir até o fim por justiça. Devolverem a dignidade que lhe arrancaram.
Enquanto isso, é dito a
Dilce, em Jaguaretama, que não chore. As lágrimas molham as asas e impedem o
anjinho de subir. Já com a certeza de que ele subiu, ela nos narra sua história
desde a primeira dor, de Ana Vitória pedindo para brincar. Ainda não era aquela
outra, pedindo para sair.
Melquíades Júnior
Repórter

Folha Serrana, um site criado para mostrar os fatos e cultura dos Bastiões/Iracema e toda a região jaguaribana...
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