"Estava
indo encontrar um amigo no bar e, no caminho, um carro com quatro rapazes parou
do meu lado e eles começaram a me chamar de várias coisas. Eu estava só no
momento e poucas pessoas passavam no local. Apenas abaixei a cabeça e andei
mais rápido". O depoimento é de uma fortalezense e o cenário é a Avenida
Treze de Maio, no período da noite. Mas poderia ser em qualquer lugar, em
qualquer horário. Diariamente, mulheres são vítimas de uma violência que não é
física, mas que amedronta, fere, constrange de forma semelhante.
O assédio a
mulheres nas ruas, nos ônibus, no espaço público em geral, embora presente em
qualquer relato feminino e perceptível a todos, tornou-se invisível. É
confundido com "elogio", com "cantada", com
"brincadeira". De tão banalizada, a prática nem chega a ser
reconhecida como questão de debate. Não existem pesquisas, não há menção em
leis, não há dados específicos sobre o assunto, e a grande maioria das
denúncias não recebe atenção devida.
"Para a
mulher, é um incômodo, é constrangedor e causa medo de que algo pior vá
acontecer. Mas existe uma naturalização dessa violência. Não há compreensão na
sociedade de que a violência psicológica e simbólica também é uma violência
contra a mulher", afirma Luana Marley, advogada da Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares na área de enfrentamento da violência contra a
mulher.
Depoimentos
Na semana
que passou, a campanha nacional "Chega de Fiu-Fiu", desenvolvida pelo
coletivo de ativistas Olga, de São Paulo, alcançou visibilidade no País ao
lançar uma cartilha online sobre assédio e divulgar um mapa colaborativo com
depoimentos e casos de abordagens agressivas em locais públicos relatados por
mulheres de todo o Brasil. Em Fortaleza, foram agregados, até agora, cerca de
20 desabafos de pessoas que já sofreram esses tipos de intimidações.
As
ocorrências vêm dos mais diversos locais da Capital. "Estava andando de
bicicleta na rua da minha casa, quando veio um cara e colocou a mão dentro do
meu short. Cheguei em casa chorando e, o pior, tive vergonha de dizer o que
aconteceu", diz um dos relatos, registrado na Rua Teresa Cristina, no
Centro.
"Ao
passar pela calçada de um vizinho, esse solta elogios ofensivos sobre minha
idade e aparência, além dos olhares nojentos. (...) Sinto-me constantemente
violada e insultada por esses acontecimentos", contou outra mulher. O caso
aconteceu na Rua Dom Pedro I. Outra vítima relata um episódio mais grave
ocorrido no transporte público. "Estava voltando da faculdade em um ônibus
lotado e um homem de uns 50 anos começou a se esfregar no meu ombro".
Denúncia
A ideia da
mobilização é combater a prática dando voz a mulheres que passaram por
situações de assédio. Seja por medo ou pelo descrédito no poder público, muitas
nem chegam a denunciar as ocorrências. Outro agravante é que, em Fortaleza, as
poucas iniciativas de apoio direto ao público feminino, muitas vezes, são
abandonadas no meio do caminho.
Um exemplo é
o ponto de acolhimento para atender as vítimas de assédio nos coletivos que
seria instalado no Terminal do Siqueira. Anunciado em maio deste ano, nem foi
iniciado. Segundo a promotora Elsuérdia Andrade, chefe do Núcleo de Gênero
Pró-Mulher do Ministério Público Estadual do Ceará (MPCE), autora da proposta,
o projeto foi revisto pois não se encaixava nas competências do órgão, cujo
foco é o combate à violência doméstica e familiar.
Conforme
ela, no próximo ano, a ideia poderá ser repassada a outros órgãos, de segurança
ou do Poder Judiciário, para que eles possam tomar a frente da iniciativa, mas
nada foi definido.
Para fazer o
registro de denúncias, só existem duas possibilidades: o Ligue 180, canal da
Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, e as
delegacias. Segundo Rena Gomes, titular da Delegacia da Mulher de Fortaleza
(DDM), a prática do assédio verbal se caracteriza como Importunação Ofensiva ao
Pudor, crime previsto na Lei das Contravenções Penais. Apesar disso, ela
explica que, não é fácil identificar e responsabilizar os culpados.
Enfrentamento
"Na
verdade, a gente só chega aos autores quando é uma coisa frequente. Quando
acontece sempre no mesmo lugar ou quando é sempre a mesma pessoa. Sendo algo
mais amplo, fica complicado fazer essa investigação e identificar o autor. Mas
nada impede que a mulher denuncie", ressalta.
Mas a
denúncia esbarra, ainda, em outro problema. Conforme a delegada, a DDM é
orientada a receber, prioritariamente, casos relacionados à Lei Maria da Penha,
voltada para a violência doméstica e familiar. Os chamados pequenos delitos
devem ser tratados junto às delegacias das áreas.
Para Márcia
Aires, titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres, da
Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos (SCDH), é aí que acontece outro tipo
de violência, a institucional. "Muitas vezes ela sofre a violência e,
quando chega na delegacia, ainda sofre a violência institucional. O
profissional não está preparado para atender. Acha que é besteira", diz.
Prática é
reflexo de relações assimétricas entre gêneros
A prática do
assédio constitui a chamada violência simbólica, na qual o homem impõe uma
posição de poder e dominação sobre a mulher, explica Jânia Perla, professora do
curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Isso
envolve um contexto assimétrico de relações, onde existe uma posição
privilegiada dos homens e a pressuposição de que eles têm o direito de fazer
qualquer comentário sobre o corpo da mulher, e tratá-la como um objeto, mesmo
que não haja receptividade", afirma.
A
especialista destaca, ainda, que o ato masculino nem sempre é consciente.
Conforme ela, o assédio apenas reflete a cultura condescendente com o
comportamento machista existente na sociedade de hoje. "Nós vivemos em uma
cultura, principalmente no Nordeste, que legitima essas atitudes. De certa
forma, a pessoa que pratica essa violência, na sua percepção, não está fazendo
outra coisa a não ser exercer sua masculinidade", observa Jânia.
Mudança de
visão
Márcia
Aires, da SCDH, ressalta que o fim do assédio depende, essencialmente, de uma
transformação cultural. Segundo ela, a Coordenadoria de Políticas Públicas para
as Mulheres não tem o poder de coibir ou punir a prática, função atribuída às
forças policiais e ao sistema judiciário. No entanto, o trabalho é centrado na
sensibilização da sociedade por meio de campanhas que visam mudar opiniões e
promover a igualdade entre os gêneros.
"Mudanças
de comportamento não são fáceis de realizar. Mesmo após a luta histórica da
mulher por direitos, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal machista, que
tem a mulher como objeto, como propriedade. Onde, se ela está usando
determinada roupa, é porque está dando espaço. Isso ocorre tanto no imaginário
masculino como no feminino. É essa visão que nós tentamos mudar", frisa
Márcia.
Na opinião
da coordenadora, políticas segregadoras, como as propostas de coletivos ou
assentos exclusivos para mulheres, não são solução. Pior, reforçam as
diferenças. A base do enfrentamento a esse tipo de violência, segundo ela, é
não deixar de denunciar. "Temos que transformar as pessoas pelo ato de
denunciar. Mostrar que a gente quer respeito, igualdade e não ser discriminada
pelo simples fato de ser mulher", pontua.
FIQUE POR
DENTRO
Cerca de 50%
das queixas são de violência moral
De acordo
com dados repassados pela Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres, a
Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza recebeu, de janeiro a outubro deste
ano, um total de 7.904 denúncias de violência contra o gênero feminino. Destas,
pelo menos 58% (4.607 queixas) correspondem a casos de violência moral ou psicológica,
que visa abalar a reputação da mulher ou a causar danos à autoestima, à
identidade ou ao desenvolvimento pessoal, respectivamente. A classificação
inclui crimes como ameaças (3.671 denúncias), difamação (125), injúria (775) e
calúnia (36).
Mais
informações:
Para mais
detalhes sobre a campanha Chega de Fiu-Fiu, acesse
http://chegadefiufiu.Com.Br/.
Em caso de
denúncia sobre assédio, procure o Ligue 180 ou a delegacia da área mais próxima
Vanessa
Madeira
Repórter

Folha Serrana, um site criado para mostrar os fatos e cultura dos Bastiões/Iracema e toda a região jaguaribana...
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